Surgem diante de mim vultos indistintos, cujos contornos, a certa distância, mal se definem. Dir-se-ia que vem ao meu encontro uma fila de ouriços, arrastando-se lenta e dolorosamente pela rampa que conduz ao rio.– São as mulheres da carqueja! Vão assim, sob estas cargas, até às Antas, até Paranhos, a quase duas léguas de distância, às vezes! (…)Paramos. As desgraçadas passam, com os enormes feixes às costas, arfando e resfolegando, pela ladeira acima. Assisto à escalada torturante dum calvário que não tem fim. Sobre os muros da rampa, os ouriços humanos depõem, de vinte em vinte metros, os carretos.
Os
barcos traziam, Douro abaixo, centenas de quilos de carqueja, planta que era
usada como acendalha para os fornos das padarias da cidade e para as casas burguesas.
A carga era despejada no cais da Corticeira e aí distribuída pelos
carregadores, maioritariamente mulheres. A cada uma delas tocava carregar um
fardo de não menos de 50 quilos de carqueja, subir a árdua Calçada da
Corticeira – 210 metros de extensão, uma inclinação de 22% – e daí levar a
carqueja aos bairros da cidade, Paranhos, Antas, Carvalhido, distâncias de
três, quatro, cinco quilómetros. Os salários eram miseráveis e incertos,
dependiam do número de viagens diárias e da carga que elas suportassem.
Pelo
menos até ao final da década de 1960, era comum ver homens, mulheres e crianças
(algumas com não mais de cinco ou seis anos) a atravessar a cidade carregados
como bestas, com pesos muito superiores às suas forças, recurso exclusivamente
economicista de quem os contratava (força de expressão, não havia vínculos
laborais) e não estava disposto a reduzir os seus lucros recorrendo ao uso de
animais de carga ou de veículos motorizados.
A 22
de Janeiro de 1936, o «Jornal de Notícias» contava um terrível acidente com um
homem que descia uma ladeira puxando um carro de carga e que acabou por ficar
debaixo do carro, preso nas tiras como se de um animal de carga se tratasse. Quando
alguém que assistia à cena perguntou a um polícia porque não autuava o proprietário
da carga, a resposta foi:
Não existe nenhum código de posturas que autorize a autuar um homem por excesso de carga. Existe, sim, para os burros…
E
quando existia legislação, ninguém velava pelo seu cumprimento. E assim,
gerações de mulheres subiram a rampa da Corticeira com 50 quilos de carqueja à
cabeça, vergadas quase até ao chão, algumas com um filho pequeno ao colo por
não terem a quem o deixar, outras no final da gravidez (há registo de partos
que aconteceram na rampa), outras tão doentes que morreram ali mesmo, em plena
subida. Eram mulheres em situação desesperada, com filhos para alimentar e
nenhuma alternativa, e foram escravizadas de forma vergonhosa e nem sequer às
escondidas. A cidade inteira assistia ao seu
martírio.
Soube
há pouco que Arminda Santos, do Clube Unesco do Porto, lançou a ideia de que o
alto da Calçada da Corticeira receba um monumento às carquejeiras, proposta que
não me parece estar a receber grande apoio. E seria justo esse reconhecimento,
a forma possível de reparar uma crueldade perpetuada por tão longos anos.
As
cidades não se constroem só de granito, calcário ou tijolo, mas da memória de
quem nelas viveu, da sua passagem pelo mesmo espaço que nos toca viver agora,
mais ou menos transformado, mais ou menos reconhecível. A toponímia conta-nos
isso e lê-se como um romance, basta querer lê-la assim.
Se
durante décadas os fornos produziram o pão que a cidade comia foi graças a
essas sacrificadas mulheres, a Elisa, a Ermelinda, ou a Palmira, a última das carquejeiras,
e é justo que quem se acerca ao muro da Corticeira, de costas para as
Fontainhas que a cada ano recebem os festejos de S. João, possa deter-se um
instante frente à imagem de uma carquejeira, ainda que apenas para um exercício
de imaginação: como seria subir aquela rampa todos os dias, várias vezes ao
dia, com 50 quilos às costas?
Recordam
sempre as cidades os seus estadistas, líderes, homens de poder, e raras vezes o
seu povo anónimo, sem rosto, que ajudou a erguê-las, que lhe calcorreou as
pedras e as afeiçoou aos pés, e que nelas soltou um último sopro de vida sem
que a cidade estremecesse, nem repicassem os sinos, nem sequer uma lágrima
aclarasse o escurecido granito.
Terminado
que está o seu martírio, vivam pelo menos as carquejeiras na memória da cidade.
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